Vol.45 n° 1


Editorial

Bioética e Política de Saúde Pública
Bioethics and Public Health Policy

No Brasil, tem-se assistido a muitas situações que contrastam, sobremaneira, justiça social e direito individual. No setor da saúde, o contraste transforma-se em dilema para o administrador público, quando lhe é colocado o dever de gerenciar recursos, sempre escassos, para atender a inúmeras e variadas demandas tanto de caráter social como individual.

De imediato, convoca-se a importância da Bioética como um alicerce que pode ser de decisões equânimes, vez que compete ao Estado garantir a distribuição, com justiça e igualdade, da riqueza produzida por toda a população para toda a Nação. Nesse afazer, ao Estado também cabe proteger os mais simples e frágeis, em seus variados aspectos (sociais, econômicos, intelectuais, físicos e funcionais).

Foi a Profa. Alice Rosa, em sua saudação à turma de novos residentes do Instituto Nacional de Câncer, em março de 1999, quem traduziu de forma singela e completa o significado da Bioética: "O estudo da conduta humana nas áreas das ciências da vida e da assistência à saúde, à luz de valores e princípios morais."

A percepção da escassez de recursos, frente a necessidades e demandas cada vez maiores, tem sido uma constante na história da humanidade. Além do mais, a sempre presente expectativa de que seja a justiça a caracterizar a boa gestão pública faz com que se pareça simples resolver o problema de alocação e gestão de recursos que se somam parcos, relativamente ao que se avoluma em termos de necessidades sociais e individuais e de pressão para a incorporação tecnológica.

Num exame mais atento, porém, a situação é mais complexa, já que as sociedades, em geral, e a brasileira, em particular, debatem-se na pluralidade de interesses e valores entre seus diversos estamentos, cujos conflitos se expressam em diferentes formas de direitos, deveres, acessibilidade e resolubilidade de seus problemas de saúde. Esses conflitos só poderão ser dirimidos, de forma pragmática, a partir da ponderação, pelo administrador público, dos riscos, benefícios, danos e perdas envolvidos. Também, a partir da negociação em busca dos melhores resultados possíveis, advindos das decisões coletivas tomadas. Em resumo, uma sociedade só se pode definir como democrática e pluralista quando tem por prioridade a inclusão e o respeito do maior número de seus integrantes, pois só assim enfrentará os seus desafios, a começar pelo de reduzir o sofrimento, e a escassez, frente a uma demanda sempre crescente de bens e serviços por uma população de usuários e consumidores, para quem a oferta desses bens e serviços não acompanhará, obrigatoriamente no mesmo grau, o crescimento dessa demanda.

Pelo exposto, a dificuldade da gestão correta e justa dos recursos disponíveis assume grande relevância para uma entidade pública como o Instituto Nacional de Câncer - INCA, seja como coordenador, pelo Ministério da Saúde, das ações nacionais de controle do câncer, seja como órgão assistencial e prestador direto de serviços oncológicos ao Sistema Único de Saúde - SUS.

Essa dupla missão leva o INCA a dois enfrentamentos diários, moralmente relevantes: O primeiro diz respeito aos fins legítimos, isto é, à identificação e priorização de problemas para a formulação, pelo Ministério da Saúde, de políticas públicas que contemplem os interesses e os direitos da população brasileira; o segundo, estreitamente vinculado ao primeiro, relaciona-se com os meios mais adequados para a consecução daqueles fins. Do ponto de vista bioético, os fins legítimos explicitam o aspecto especificamente moral da justa alocação de recursos; e os meios mais adequados, a decisão administrativa de como fazê-la. Como um não pode ser dissociado do outro, a gestão de recursos escassos adquire o caráter de um verdadeiro dilema moral.

Na década de 90, isso se tornou patente para os sistemas de saúde, em todo o mundo, tornando-se particularmente difícil para países como o Brasil, onde há uma legislação de vocação universalista, como o é a Lei Orgânica da Saúde, que, em seu sétimo artigo, define as diretrizes do SUS, juntamente com a descentralização político-administrativa: universalização de acesso e integralidade e igualdade da assistência, ao mesmo tempo em que orienta a utilização de dados epidemiológicos para estabelecer prioridades na alocação de recursos.

Inquestionavelmente, tais diretrizes baseiam-se em princípios morais que, por sua vez, orientam o direito, visto que a Constituição Brasileira de 1988 define, em seu artigo 196, a saúde como um "direito de to-dos e dever do Estado", e reza que seja garantido o "acesso universal e igualitário" aos serviços de saúde, ou seja, o princípio da igualdade de oportunidade de acesso aos serviços. Porém, este princípio é dificilmente compatível com o estabelecimento de prioridades, razão por que, a rigor, não se consegue aplicar a Lei 8080 em sua completitude.

O conflito que passou a existir entre esta Lei e o que ela pretende garantir (o pleno direito à assistência à saúde) levou ao caráter parcial, relativo, deste direito. Assim, o enunciado legal dever-se-ia expressar, mais realisticamente, como direito do cidadão e dever do Estado, no contexto dos recursos efetivamente disponíveis. Além do mais, isso tornaria mais pertinente a abordagem moral da alocação de recursos, bem como o debate público sobre esta e sua eficiência e efetividade.

No Brasil, esse debate foi assumido explicitamente, nos anos 90, pela intelligentsia da saúde pública, seja para resolver (pela aceitação de ajustes considerados necessários e razoáveis) os conflitos que se apresentaram, seja para contestar esses ajustes (como mero economicismo e fonte de injustiças). Resultou que, quase sempre, a discussão tergiversou para o campo ideológico, carecendo, ainda, de uma visão menos parcial.

Uma maior imparcialidade pode ser oferecida pela Bioética, um novo marco conceitual, surgido no campo da filosofia prática, ou ética aplicada, e criada para dirimir conflitos de interesses e valores, cuja incorporação à prática dos profissionais da saúde, gestores ou sanitaristas encontra compreensíveis resistências, ou aderências.

A integração da Bioética ao campo da saúde constitui, portanto, um fato cultural inusitado, que bem demonstra que a ética profissional, cujas regras, normas e códigos são indispensáveis à prática, não se reduz à ética hipocrática dos deveres e conduta absolutos. A Bioética a eles agrega valores morais, sejam estes denominados direitos, princípios, virtudes ou cuidados. Sabidamente, tais valores não são consensuais em todos os lugares e todas as culturas, motivo pelo qual alguns bioeticistas consideram o estágio atual da Bioética como sendo particularmente conflitivo, embora ele reflita, também, o caráter de conflitos morais que despontaram nesta década final de milênio. A pluralidade de concepções sobre o Bem e o Mal, o Justo e o Injusto, o Certo e o Errado, situação típica das sociedades democráticas contemporâneas, bem mostra que não mais existem princípios de autoridade transcendentes, capazes de resolver os diversos conflitos que surgem no seio dessas sociedades, mas tão somente prinípios (ou valores, ou virtudes) relativos, apenas capazes de nortear negociações e orientar compromissos assumidos pelos envolvidos em conflito.

A Bioética tem duas dimensões inseparáveis: a analítica, que, de forma crítica e, no quanto for possível, imparcial, analisa os conflitos em jogo numa disputa moral e procura superá-la pelo argumento e consenso. Já a dimensão prescritiva, a partir da análise procedida, propõe a implementação da melhor solução, à luz de princípios morais previamente explicitados.

Logo, a Bioética reconhece que, no campo da saúde, existem conflitos de valores e de interesses, que ela pretende não somente expor e discutir, mas também ajudar a resolver. Os conceitos utilizados podem ser usados tanto para legitimar como para criticar as políticas restritivas de alocação de recursos. Do ponto de vista de saúde pública, a moralidade de um ato depende da sua utilidade ou abrangência social.

Assim sendo, numa condição em que a humanidade tivesse tudo o que deseja e precisa, em que o homem não devesse se preocupar com qualquer de suas necessidades, a justiça seria um conceito inútil e, possivelmente, jamais existiria como princípio ou virtude moral. Da mesma forma, se alguém consumisse um bem disponível em quantidades ilimitadas, jamais poderia ser acusado de injusto, pois, certamente, não entraria em conflito com outros humanos. As regras da justiça servem, portanto, para definir limites precisos à distribuição e ao uso de bens, e se justificam pela sua utilidade para a vida social. Elas tampouco existiriam, se o homem fosse auto-suficiente e pudesse viver completamente isolado dos demais seres humanos.

A Bioética busca deixar isso claro, para que o administrador, ao tomar as suas decisões, o faça com bons argumentos, mas também com a responsabilidade por suas decisões, ou omissões, pelas quais, inevitavelmente, será julgado por seus co-cidadãos.

O momento atual por que passa a Oncologia, em termos mundial e nacional, enseja uma reflexão profunda e sincera sobre esses aspectos, sem o que ela correrá o risco de se marginalizar, por elitismo e indiferença social.



Jacob Kligerman
Diretor do Instituto Nacional de Câncer

e-mail: kligerman@inca.gov.br

Agradecimentos: A Fermin Roland Schramm e Maria Inez Pordeus Gadelha, pelas sugestões dadas

Revista Brasileira de Cancerologia - Volume 45 n°1 Jan/Fev/Mar 1999